Já contei aqui que os textos que escrevo neste blog são fruto das demandas que recebo diariamente em meu escritório. Assim, aproveito que elaborei uma resposta para um consulente ou cliente e trago para cá, na esperança de que as informações possam alcançar pessoas de todo canto e promoverem discussões relevantes.
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ToggleA curatela ainda é uma medida negligenciada, pouco debatida e que precisa ser feita com cuidado – com o curatelado e com sua família.
Então, vou relatar, misturando as histórias, um caso que tem me aparecido com frequência – como lidar com a incapacidade de pessoas que viveram um segredo ao longo da vida?
A história que me contam: quem é essa personagem?
A consulente chegou ao escritório e me contou que sua tia já está idosa e, há alguns anos, já apresentava sinais de esquecimento e confusão mental. Recentemente, conseguiram levá-la ao médico e o diagnóstico foi demência de Alzheimer – os sintomas já estavam bem avançados e ela não poderia continuar vivendo “sozinha”. Precisava de alguém para cuidar dela e de suas finanças.
Pergunto, então, se a tia tem filhos, se é casada, se mora sozinha. É aí que a sobrinha me conta que a tia tem uma amiga que mora com ela há mais de vinte anos. É uma amiga que ela conheceu em um hospital em que trabalhava e que, em algum momento, precisou de ajuda e a tia levou para passar um tempo na casa dela. Lá se vão mais de duas décadas e elas continuam morando juntas.
Aliás, os sobrinhos, representados pela cliente que me procura, estão preocupados. Eles vão levar a tia para uma instituição de longa permanência – já pesquisaram algumas excelentes. A renda da tia é boa, mas precisarão alugar a casa dela para complementar as despesas. O que eles vão falar para a amiga dela que mora lá há mais de duas décadas?
Essa amiga também está idosa, bastante dependente, mas tem uma renda muito pequena. Eles não sabem direito sobre sua família, mas têm notícias de que mora em outra cidade, em condições muito diferentes das que ela vive na companhia da tia. Como vão avisar a ela das decisões que estão tomando?
Eles sabem que entre elas há dependência emocional, mas não podem deixar uma cuidar da outra. Não é seguro. Eles precisam resolver a situação da tia, em relação a quem se sentem responsáveis. Mas e a amiga? Não há dinheiro para levá-la para a mesma instituição.
Essa história, acreditem, é muito comum. Mudam os detalhes, o contexto, mas a pergunta que fica no ar é sempre a mesma: quem é essa pessoa, essa amiga?
Quando há abertura, eu pergunto: olha, você acha que essa “amiga”, na realidade, é companheira de sua tia? Em regra, a pessoa responde: sinceramente, não sei. Se fosse, tudo bem, mas nunca houve nada que nos permitisse afirmar isso. E, agora, com a tia com a demência avançada, é difícil resolver essa questão. Não temos qualquer abertura para essa conversa a essa altura.
Não há resposta simples para um caso como esse. Inclusive, pela lei, a renda da tia, que será curatelada, sequer pode ser usada para ajudar na manutenção de uma amiga. Ou seja, ainda que a família decidisse tratá-las dessa forma, poderiam encontrar óbices na prestação de contas.
A solução, em regra, vai se dar como se a relação ali fosse só de amizade, pois foi isso que foi sistematicamente afirmado ao longo dos anos. Mas será que foi a melhor solução?
Se a pessoa declarava sua sexualidade, a questão é outra
Aqui no blog já tive oportunidade de explicar que as decisões tomadas pelas pessoas curateladas devem proteger sua autodeterminação, suas escolhas existenciais e seus afetos.
Ou seja, se ao longo da vida essa pessoa tornou pública sua identidade de gênero e/ou sua sexualidade, elas devem ser respeitadas em caso de incapacidade. A curatela não permite que o curador interfira nesses aspectos da vida íntima de uma pessoa.
Inclusive, no post que tratamos do assunto, sugerimos fortemente uma auto curatela para a comunidade LGBTQIAP+, a fim de evitar que sua personalidade seja violada em caso de incapacidade.
O problema aqui é outro: como resolver isso quando a pessoa decidiu passar a vida em segredo?
Você quer obrigar as pessoas a saírem do armário?
Não, de jeito nenhum. A intimidade garante o direito ao segredo. Uma pessoa pode, sim, decidir não partilhar sua sexualidade com ninguém além de seus parceiros. Cada pessoa tem o seu tempo, o seu contexto e ninguém deve ser fiscal da vida alheia.
Mas o segredo é um impeditivo ou dificultador da revelação do que chamamos de vontade presumível.
Ou seja, o ideal é que uma pessoa tenha sido explícita ao longo da vida sobre suas vontades. Assim, em uma situação em que outra pessoa tem que decidir por ela, é muito mais fácil respeitar seus desejos. Idealmente, essa vontade estaria formalizada em um documento. Mas, para quem viveu como um livro aberto, mesmo sem uma formalização, não é tão difícil fazer esse exercício de imaginação.
Agora, quando a pessoa manteve uma parte relevante de sua vida em segredo como, por exemplo, seus relacionamentos afetivos, é quase impossível presumir qual seria sua vontade. Na realidade, ninguém pode tirar uma pessoa do armário na sua incapacidade, decidindo por ela admitir algo que ela não admitiu ao longo da vida. Até porque pode não ser.
Por isso, defendo que cada um viva sua intimidade como prefere. Mas é importante que as pessoas saibam que o segredo tem consequências no âmbito jurídico. Com essa informação é possível tomar decisões esclarecidas, sejam elas quais forem.
Despeço hoje recomendando a leitura de A palavra que resta, de Stênio Gardel, que me emocionou muito nos últimos tempos.
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